imagem gráfica jornalística de 2000 pra cá é um escandaloso vazio
Orlando
19/10/2016 16h41
dálcio machado é um dos maiores chargistas brasileiros.
dálcio machado é um dos cartunistas mais premiados no brasil e em salões internacionais.
dálcio machado, assim como boa parte dos grandes cartunistas do país, não tem mais vínculo com nenhum jornal.
ele trabalhou no correio popular e no diário do povo de campinas durante 25 anos. começou com 17.
neste ano, o artista foi considerado o melhor cartunista do mundo ao ganhar o primeiro prêmio no mais antigo salão de humor do planeta, o international cartoon contest knokke-heist, da bélgica.
ironicamente, neste mesmo período em que foi receber o prêmio, num trem entre edinburgo e londres, dálcio negociava com o editor do jornal pelo whatsapp na tentativa de ainda permanecer colaborando.
de volta ao brasil, seu salário já estava atrasado fazia meses e mesmo assim ainda topou diminuir seu pagamento e publicar menos para continuar. com os novos atrasos a situação se tornou incontornável.
o caso do dálcio é apenas mais um na recente história da imprensa brasileira em que profissionais de reconhecido talento são dispensados da noite para o dia.
aconteceu com o baptistão no estadão, com gustavo duarte no lance, com ivan cabral no novo jornal, cau gomez no o dia e, acreditem, com jaguar no extra só para citar alguns.
na contramão da história, a imprensa brasileira se torna mais e mais árida.
a conta pode, claro, ser creditada a uma crise que emenda na outra.
eu mesmo já escrevi aqui que trabalho desde 79. nunca sem uma ou outra crise e o remédio brasileiro para crise é corte, nunca criatividade, nunca melhorar seu produto.
jornais diminuem seu staff e páginas como biscoitos diminuem o peso da embalagem.
não se aprende. erramos, continuamos errando e vamos nessa toada infinitamente.
podemos dizer que jornais e revistas foram engolidos pela internet. não deixa de ser verdade. mas eles mesmos investiram no formato acreditando que as avenidas criadas entre as notícias seriam recheadas de lojas e shoppings virtuais. o que aconteceu foi um público leitor achar que pode ter tudo de graça.
o formato criou dois problemas: empresas têm um elefante branco digital e outro impresso.
no jornal, o menos importante é a notícia que já está disponibilizada em tempo real desde o dia anterior.
portanto, a saída foi fazer jornais repletos de colunistas que têm como função comentar as notícias requentadas. a folha, aliás, tem no painel do leitor um título "colunistas" para tratar dos comentários dos leitores ao textos deles!
o leitor assina a folha porque tem o jânio, o clóvis, o elio, o duvivier. assina o estado porque tem o veríssimo, o jabor, o porchat, o karnal. são os caras que vão dizer como ele, o leitor, deve entender a notícia que está na home.
publicações ganham sempre um brilho maior quando tem um grupo na editoria de arte muito afinado.
diagramadores que risquem páginas arrojadas, ilustradores que recheiem páginas com desenhos que revelem as entrelinhas dos textos, charges e cartuns que provoquem questionamentos que os textos não refletem.
em muitos países desenhistas têm o status de articulistas e não precisa ir longe. na argentina temos o jovem liniers mas temos também o octagenário sábat e o sexagenário crist ainda publicando e influenciando jovens.
ralph steadman, scarfe, quino, sempè são alguns dos que foram referências para angelis, laertes, ziraldos e tantos outros que fazem parte da cultura gráfica do país.
jornais brasileiros deixarem de lado colunistas gráficos é um erro sem precedentes na história.
sabemos o lado b do país através dos desenhos de belmonte, do guevara, de j.carlos e dos cartunistas que, com seu olhar aguçado, transformavam em imagens o que só o humor podia dizer.
angeli, por exemplo, fez um retrato fiel e cruel dos anos 80. o comportamento, a forma das pessoas se vestirem, o cuspe, o sexo, os dodóis. isso estava estampado nos jornais diários.
qual jornal dá espaço para crônicas gráficas sobre a nova juventude?
as imagens publicadas são produzidas por garotos e garotas que têm outra atividade, que desenham nas horas livres e trabalham com web em algumas das muitas startups que existem por aí.
culpa deles? não!
muitos são talentosíssimos mas nasceram e foram criados em um ambiente que só faz sucateá-los.
quem for estudar a importância da imagem jornalística dos anos 2000 para cá vai dar de cara com um escandaloso vazio.
os meninos que têm o que dizer abandonaram os jornalões e foram se auto-publicar, formaram coletivos, participam de feiras ou mantém blogs independentes.
antes que, de novo, me chamem de saudosista ou rancoroso, devo dizer que estas linhas são claras como a luz do sol. ilustradores, cartunistas, chargistas são colunistas e como tal deveriam ser tratados.
como colunistas, deveriam ter cumplicidade com o leitor e o leitor com eles. não se consegue isso do dia para a noite mas como o dálcio machado e tantos outros fizeram deixando suas impressões digitais na história da imprensa.
publicar uma vez por semana ou uma vez a cada 15 dias não é bom para o artista, para o leitor ou para o jornal.
jornalismo se faz na lida diária, no fazer, no se dedicar religiosamente a aquilo que se acredita.
é uma visão romântica?
sim, é.
a pragmática está dando certo?
parece que não.
ps. ilustrando este texto, a charge premiada do dálcio e alguns raros exemplos de páginas com desenhos nas últimas semanas.
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Sobre o autor
Orlando Pedroso é artista gráfico e ilustrador, trabalhou com praticamente todas as publicações da grande imprensa. Foi colaborador da Folha de S. Paulo de 1985 a 2011. Ilustrou mais de 60 livros infanto-juvenis e é co-autor de “Livro dos Segundos Socorros” e “Não Vou Dormir” – finalista do prêmio Jabuti de 2007 nas categorias “ilustração” e “melhor livro”. Foi vencedor do Prêmio HQ Mix de melhor ilustrador nos anos de 2001, 2005 e 2006. Expôs nas mostras individuais como “Como o Diabo Gosta”(1997) , “Olha o Passarinho!”(2001), “Uns Desenhos” e “Ôtros Desenhos” (2007). Em 2008, faz uma exposição retrospectiva de 30 anos de trabalho como artista convidado do 35º Salão de Humor de Piracicaba.- É autor dos livros Moças Finas, Árvres e do infantil Vida Simples, e membro do conselho da SIB – Sociedade dos Ilustradores do Brasil.
Sobre o blog
Este blog trata de artes gráficas, ilustração, cartum, quadrinhos e assuntos aleatórios.