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a tragédia de charlie hebdo e 4 pequenas reflexões

Orlando

09/01/2015 13h27

o sangue dos jornalistas do charlie hebdo respingou em tudo quanto é redação de publicações do mundo inteiro e fez a rede ferver também.
ataque à civilização, ataque à liberdade de imprensa, endurecimento das relações ocidente e oriente, o recrudescimento da polarização entre a frança e mulçumanos, questionamento entre fé e religião, o velho embate entre direita e esquerda são alguns dos pontos levantados pelos internautas brasileiros.
por outro lado, há os que não compreendem o porque de a morte de 12 jornalistas terem mais repercussão do que as 160 da ocupação do morro do alemão, das 180 mil de sírios, os massacres na líbia ou no iraque, os flagelados da somália, etc.
de certa forma, o mundo já foi pior e mais sangrento. o que chamamos de civilização foi construído a duras penas e em camadas. os direitos e liberdades conquistados, aliás com muito sangue, são os estandartes que carregamos na esperança de um mundo mais justo e fraterno. daí um atentado desse naipe nos afrontar tanto. bárbaros continuam se matando, pensamos, e tudo bem. eles que se entendam. no nosso quintal, não.
lembrar que a "civilização" foi construida por países colonizadores e opressores!

para os cartunistas, o impacto é fulminante seja pela perda de referências como o wolinski, seja pela nova régua que talvez tenha que ser usada daqui para frente para medirmos qual o limite de nossa liberdade.
algumas outras questões também me batem:

1.
jornais do mundo inteiro se unem contra a o ataque à liberdade de imprensa publicando capas e cartuns dos charlies.
lindo.
mas qual desses jornais e revistas bem estabelecidos publicaria espontaneamente um cartum com a santíssima trindade (deus, cristo e o espírito santo) fazendo "trenzinho"? ou de um cartunista e um mulçumano se beijando na boca?
eu arriscaria, sem muito medo de errar, que nenhum.
a religião é tabú dentro das redações.
não se mexe com a igreja, não se mexe com o clero e, mais recentemente, muito cuidado com evangélicos.
rafael campos rocha publica seu "deus, essa gostosa" no caderno ilustríssima da folha, laerte já publicou a tirinha "deus", o quadrinista kipper publicou "deusinhos", na folhinha. são exemplos do uso de temas sagrados sem sacrilégio. não há insulto ou ofensa. e, sejamos honestos, exceções na imprensa brazuca.
o cerco à liberdade de imprensa, no brasil, existe. mais velado aqui, mais explícito ali mas existe mesmo que parta do próprio jornalista ou cartunista.

2.
por outro lado, um cartum com padres dançando sem cueca ou de um cristo com o espírito santo entalado nos fundilhos não é para ser publicado num veículo da grande imprensa.
transgressões e certos tipos de experiências gráficas devem ser feitas em veículos próprios, independentes como foram o "o malho", "careta", "o pasquim" e "a casseta popular", só para ficarmos em quatro exemplos.
inexplicavelmente essas publicações desapareceram e não deram lugar a outras.
gente querendo fazer humor escrachado e profano há de ter.
o que nos impede de criarmos novos veículos que reunam os malvados brasileiros é a pergunta que não cala.

3.
o atentado ao charlie hebdo aconteceu durante uma reunião de pauta que é quando se decide o que vai entrar ou não na próxima edição.
essa é uma cena!
senhores entre 40 e 80 anos sentados discutindo, trocando idéias, fazendo piadas!
no brasil, isso acabou. cada cartunista virou uma ilha e isso é péssimo.
tive a sorte de ainda pegar os fechamentos da página "vira-lata", do angeli e os do jornal "movimento".
neles, cartunistas como angeli, fortuna, laerte, alcy, os carusos, jotinha, nilson, etc. chegavam, conversavam e faziam na hora os desenhos que estariam na página em algumas horas.
não havia melhor escola.
quadrinistas ensaiam montar coletivos, publicar juntos, abrir editoras. mas quadrinhos são um exercício de paciência, leva tempo, não há muita chance para arrependimentos.
e, tirando o marcatti, não há ninguém rompendo a barreira da decência e bons costumes do irreverente brasil.

4.
na reunião de pauta havia pelo menos dois senhores da terceira idade: cabu, de 75 anos e wolinski, de 80.
talvez poucos na frança ou em outro lugar se mantenham produtivos e criativos com essa idade.
no brasil há, mas você imaginar qualquer um deles se deslocando semanalmente para uma reunião na redação é quase impossível.
quase tão impossível quanto você encontrar algum "cabeça branca" entre as dezenas de iniciantes que compõem nossas redações hoje.
wolinski continuava inquieto e inspirador.
mesmo de uma forma torta e trágica, continuará dando o exemplo do velhinho que saia de casa para se dedicar a algo em que acreditava.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Sobre o autor

Orlando Pedroso é artista gráfico e ilustrador, trabalhou com praticamente todas as publicações da grande imprensa. Foi colaborador da Folha de S. Paulo de 1985 a 2011. Ilustrou mais de 60 livros infanto-juvenis e é co-autor de “Livro dos Segundos Socorros” e “Não Vou Dormir” – finalista do prêmio Jabuti de 2007 nas categorias “ilustração” e “melhor livro”. Foi vencedor do Prêmio HQ Mix de melhor ilustrador nos anos de 2001, 2005 e 2006. Expôs nas mostras individuais como “Como o Diabo Gosta”(1997) , “Olha o Passarinho!”(2001), “Uns Desenhos” e “Ôtros Desenhos” (2007). Em 2008, faz uma exposição retrospectiva de 30 anos de trabalho como artista convidado do 35º Salão de Humor de Piracicaba.- É autor dos livros Moças Finas, Árvres e do infantil Vida Simples, e membro do conselho da SIB – Sociedade dos Ilustradores do Brasil.

Sobre o blog

Este blog trata de artes gráficas, ilustração, cartum, quadrinhos e assuntos aleatórios.

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