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viramos todos mascates

Orlando

16/08/2012 10h18

pintura de rugendas

nunca entendi bem porque a imagem dos vendedores nas pinturas da época do império no brasil me chamavam tanto a atenção nos livros de escola.
a explicação pode estar no que eu via em minhas férias na cidade de capão bonito, interior de são paulo, onde morava a família de meu pai e eu sempre passava as férias.
havia gente vendendo de tudo nas ruas. verdura, galinhas, doces, tecidos, pão, leite, queijos, bijuterias, pentes, o diabo. havia os que batiam de porta em porta e os que ficavam sorumbáticos, sentados em alguma sombra da praça da matriz dividindo o espaço com os engraxates.

 

foto sem crédito


de volta a são paulo, outra imagem era a dos garrafeiros (ou carroceiros como podiam ser chamados também) que tocavam a campainha perguntando se havia jornal velho ou garrafas que eles pudessem comprar. minha mãe juntava aquele punhado de papéis, o comprador amarrava com essas cordas de sisal, pesava numa balança manual e fazia um cálculo que sempre rendia algumas poucas moedas.
aí ele olhava as garrafas porque umas serviam e outras não e isso nunca entendi bem.
e a campainha tocava muito. havia o vendedor de tecidos, o vendedor de barsa, de bíblia, de panelas, de chinelo, vassouras e espanadores.
assim como no império, emprego era coisa para poucos e o jeito era se virar.
isso era cidade grande, final dos 60, começo dos 70, vésperas do milagre econômico.

até então, o lance era ter um emprego público.
o funcionalismo abrigava servidores de todas as estirpes, de faxineiros a professores ou chefes de repartição. os salários eram razoáveis e davam pro gasto de uma família que tivesse os filhos numa boa escola pública, que usasse a rede de saúde. e ainda havia a segurança e aposentadoria.

os anos 70 trouxeram um progresso que o brasil nunca havia experimentado e, com isso, a iniciativa privada passou a oferecer muito mais vantagens do que o estado poderia dar conta.
bons salários, prêmios, férias, 13º, plano de carreira e a promessa de um progresso que seria generoso com todos. o país do futuro estava nascendo e enterrando seus carroceiros, ambulantes que tocavam campainha e boa parte do trabalho informal.
um pouco exagerado isso mas vocês entenderam. o panorama havia mudado.

quem começou a trabalhar no final dos anos 70, não sabe o que é lidar com uma economia sem crise.
atravessamos a crise do petróleo, do papel, do chuchu, da argentina, da coréia, do japão e o barco começou a balançar muito.
no brasil dos yuppies, inventou-se a re-engenharia, processo mágico onde as empresas se re-organizavam demitindo muito, pagando pouco aos que ficavam enquanto o trabalho de cada um aumentava muito.
depois, a terceirização que possibilitou que boa parte dos empregados de uma empresa se desligasse dela e passasse a arcar com todos os custos de produção de seu trabalho.
a ordem nas empresas era enxugar enquanto os novos profissionais passavam a lidar com as delícias de ser seu próprio patrão, e seu próprio gerente, o próprio rh, rp, o criativo, o chefe do almoxarifado, do financeiro e das compras, além de ter que lidar com o contador, com o técnico de manutenção do equipamento e de ter uma bola de cristal para adivinhar pra onde a economia está andando.

a economia brasileira que nos fez sentir uma breve brisa de pujança, empurra a todos de volta para um período pré 70.
o funcionalismo volta a ser uma opção pela estabilidade ou até mesmo pelos salários que a iniciativa privada não quer mais pagar e os concursos públicos bombam.
os garrafeiros agora são catadores e não pagam mais pelos jornais e garrafas que você descarta.

 

http://familiaache.blogspot.com.br/2009/11/fazemos-qualquer-negocio.html


os artistas gráficos não são exceção e também são atingidos por essa nova realidade. todo mundo abrindo uma lojinha na internet tentando vender originais, publicações, broches, bonequinhos, prints, posteres, camisetas.
há, ainda, uma corrida rumo aos editais e ao catarse, site de cotização entre amigos para financiamento de projetos culturais.
todos nós viramos mascates e fico pensando se isso faz mesmo parte de nossa natureza.
talvez de um ou de outro que tenha essa habilidade, que saiba fazer negócio e ganhar dinheiro mas, não me parece ser a primeira escolha da maioria.

no mundo globalizado (nossa, como eu detesto essa expressão!), emprego é artigo raro mas no brasil a extinção do trabalho e, principalmente do trabalho remunerado, beira a aberração.
já escrevi antes sobre a "cultura do de grátis". se antes havia sempre aquele espertonildo que explorava o sobrinho do moreira lá do almoxarifado e que desenha suuuuper bem, hoje há os que estão sempre dispostos a "dar visibilidade" a novatos incautos e gratuitos. essa arte vem se expandindo e, não raro, profissionais com anos de lida recebem ofertas de trabalho cujo pagamento é o crédito impresso na vertical e em corpo 6.

enquanto isso, todo mundo se virando e montando uma barraquinha!
– é um real! é um real!
– na minha mão é mais barato!
– moça bonita não paga! mas também não leva!

na real, todo mundo tá levando.
e não precisa ser bonito.

ilustradores e cartunistas estão tendo que se virar. foto de marc ferrez

 

 

 

 

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Sobre o autor

Orlando Pedroso é artista gráfico e ilustrador, trabalhou com praticamente todas as publicações da grande imprensa. Foi colaborador da Folha de S. Paulo de 1985 a 2011. Ilustrou mais de 60 livros infanto-juvenis e é co-autor de “Livro dos Segundos Socorros” e “Não Vou Dormir” – finalista do prêmio Jabuti de 2007 nas categorias “ilustração” e “melhor livro”. Foi vencedor do Prêmio HQ Mix de melhor ilustrador nos anos de 2001, 2005 e 2006. Expôs nas mostras individuais como “Como o Diabo Gosta”(1997) , “Olha o Passarinho!”(2001), “Uns Desenhos” e “Ôtros Desenhos” (2007). Em 2008, faz uma exposição retrospectiva de 30 anos de trabalho como artista convidado do 35º Salão de Humor de Piracicaba.- É autor dos livros Moças Finas, Árvres e do infantil Vida Simples, e membro do conselho da SIB – Sociedade dos Ilustradores do Brasil.

Sobre o blog

Este blog trata de artes gráficas, ilustração, cartum, quadrinhos e assuntos aleatórios.

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