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chupar pode ser gostoso mas copiar é fundamental

Orlando

21/11/2014 08h00

Perereca

um dos grandes dramas dos novatos é achar seu estilo.
a palavra causa tremores e a obrigação de se achar uma forma absolutamente pessoal de desenhar pode ser uma tortura especialmente em tempos como os nossos em que temos tudo à mão mas pouquíssimas referências.
explico: muitos dos profissionais (de imprensa, especialmente) começaram a desenhar e a desejar publicar porque viam páginas duplas, desenhos maravilhosos e bem editados em jornais e revistas.
hoje, talvez, tenhamos mais títulos nas bancas mas, ironicamente, menos espaço para publicar e os que publicam também estão aprendendo como os novatos que ainda brigam consigo mesmo em seu próprio quarto.
por outro lado, temos em um simples monitor, o mundo. museus, exposições, publicações, blogs e sites. mas não é a mesma coisa.
a publicação na banca demonstra que alguém pode viver de seu desenho, que ser profissional é estar lá e com as contas pagas.
profissionais também vivem esse drama. vivem comparando seu trabalho com os dos colegas, vivem se questionando se o desenho não está envelhecendo, se a fonte de ideias está secando.
eu mesmo tinha mais de 10 anos de profissão e vivia às turras com meu traço, com a não intimidade com certos materiais e com uma inevitável inveja branca quando via algum desenho matador publicado aqui e ali.

pois bem, tenho falado muito sobre isso com garotos que me procuram para mostrar portifolio.
todos, sem exceção, se desesperam na tentativa de achar um traço para chamar de seu, para desenhar mãos, desenhar pés, dar expressão, usar perspectiva e eu digo simplesmente que tudo já está inventado e o que nos resta é copiar. sim, copiar.
copiar é diferente de chupar.
copiar é estudar o trabalho de outro para entender como ele chegou lá.
num "piratas do tietê", do laerte, por exemplo, tem tudo para se começar bem. tem anatomia, uma infinidade de expressões, profundidade, perspectivas, navios, movimento, claro/escuro, arquitetura e mãos, muitas mãos.
copiar o laerte é um bom começo.

modelo vivo é sempre outra boa opção mas nem sempre se pode ter um profissional à mão. podemos, então, observar os passageiros do metrô, do ônibus, transeuntes na rua, parentes em casa. modelos não precisam, necessariamente, estarem pelados.
e se a questão é anatomia, vamos aos gregos. nas estátuas gregas encontramos todos os músculos e posições que precisamos para entender o corpo humano. um bom livrou ou o querido google resolvem fácil.

quando falo em copiar, os olhos se arregalam mas, como disse, copiar é diferente de chupar. vc copia para aprender, para entender, não para mostrar para os outros ou colocar no portifolio.
se a gente copiar um, o outro, mais outro, mais aquele e tantos quanto puder dos quadrinhos, da ilustração até os pintores clássicos, mais chance de se criar um repertório próprio. ele será a soma de tudo o que se copiou mais o que se descobriu de si próprio passado por uma peneira.
o que pingar no papel é nosso estilo.

coincidentemente estou lendo "vida", a biografia do guitarrista dos stones, keith richards e o que me chamou a atenção logo de cara (fora o fato de ele ter tomado todas e ainda assim se lembrar de coisas) é a obsessão por tentar tocar igual aos guitarristas de blues de chicago. ele e mick jagger queriam chegar à crueza daquele som e, para isso, colocavam a bolachona na vitrola e faziam infinitas sessões de escuta e tentativas.
ele não queria ser um compositor. queria ter uma banda que soasse como um jimmy reed, como jimmy rogers, pat hare, caras que tocavam com muddy waters e chuck berry.
escutar, escutar, copiar as notas, tentar reproduzir.
vc só fica bom repetindo à exaustão.
keith não perseguia seu estilo. queria ficar bom como os heróis americanos que ele escutava nos compactos simples que conseguia com amigos em londres.
anos depois, numa dessas encruzilhadas, percebeu que conseguia compor algo, que era bom em criar riffs, que podia decidir por uma afinação mais aberta e, finalmente, ter sua assinatura em algumas das músicas mais importantes do rock mundial.
keith richards todo mundo conhece. e ele começou copiando.
o truque está em saber o momento de se desgarrar de seus mestres e passar a ter uma identidade, um dna reconhecível.

no desenho, é a mesma coisa. treino, observação, repetição, curiosidade.
se dar a liberdade de errar e tirar proveito disso.
o estilo, aliás, pode estar escondido atrás de erros e não na tentativa de se fazer tudo certinho mas isso a gente só descobre fazendo.
e fazer dá um certo trabalho.

 

 

 

 

Sobre o autor

Orlando Pedroso é artista gráfico e ilustrador, trabalhou com praticamente todas as publicações da grande imprensa. Foi colaborador da Folha de S. Paulo de 1985 a 2011. Ilustrou mais de 60 livros infanto-juvenis e é co-autor de “Livro dos Segundos Socorros” e “Não Vou Dormir” – finalista do prêmio Jabuti de 2007 nas categorias “ilustração” e “melhor livro”. Foi vencedor do Prêmio HQ Mix de melhor ilustrador nos anos de 2001, 2005 e 2006. Expôs nas mostras individuais como “Como o Diabo Gosta”(1997) , “Olha o Passarinho!”(2001), “Uns Desenhos” e “Ôtros Desenhos” (2007). Em 2008, faz uma exposição retrospectiva de 30 anos de trabalho como artista convidado do 35º Salão de Humor de Piracicaba.- É autor dos livros Moças Finas, Árvres e do infantil Vida Simples, e membro do conselho da SIB – Sociedade dos Ilustradores do Brasil.

Sobre o blog

Este blog trata de artes gráficas, ilustração, cartum, quadrinhos e assuntos aleatórios.

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